Carta interceptada algures entre o Bairro Alto e a Alfandega
Lisboa, 30 de fevereiro de 1000 e 900 e 90 e 9
Querido filho,
Escrevo-te estas linhas para que saibas que estou viva.
Escrevo-te devagar porque sei que tu não consegues ler depressa.
Bom, não vais mais reconhecer a casa quando vieres, porque a gente
mudou.
Finalmente enterramos o teu avô. Encontramos o cadáver durante as mudanças; estava no armário desde aquele dia em que nos ganhou às
escondidas.
Hoje a tua irmã Júlia teve um bébé mas como ainda não sei se é
menino ou menina, não posso dizer se tu és tio ou tia.
Quem não tem
aparecido por aqui é o tio Venâncio, que morreu no ano passado.
E o teu primo Jacinto, que sempre acreditou ser mais rápido que um
touro, comprovou que não o era.
Estou preocupada com o nosso cãozinho, que
insiste em perseguir os carros parados e está a ficar cada vez mais chato.
Ah! Finalmente os engarrafadores de sumos tiveram a grande ideia de imprimir na
tampinha a frase "Abra por aqui." Que achas?
O teu irmão José fechou o carro com a porta trancada e deixou as chaves
lá dentro. Tive que ir a casa para ir buscar a cópia da chave para poder
tirar nós todos de dentro do carro.
Mando-te esta carta pelo Manel, que vai para aí amanhã. É verdade! Será que
podes ir busca-lo à Portela?
Bom, meu filho, não escrevo o endereço
porque não o sei. É que a última família que viveu aqui nesta
casa levou os números para não terem que mudar de endereço.
Se encontrares a dona Maria, dá um olá da minha parte e se não a
encontrares, não digas nada.
..... A tua mãe que te ama: Eu.
PS: Ia mandar cem escudos, mas já fechei o envelope.
"Era meia noite, o sol brilhava entre as trevas de um dia claro e bonito! Um homem vestido sem roupa com as mãos nos bolsos estava sentado de pé numa pedra de pau à beira de um rio seco. Ele dizia 'eu prefiro morrer do que deixar de viver!'.
Naquele momento um surdo estava ouvindo um mudo falar e um aleijado corria atrás de um carro parado. Bem longe daqui perto um senhor moreno careca penteava seus lindos cabelos louros. À noite durante o dia, senti uma apetitosa falta de comer em pratos sem alimentos... Vi peixes treinando natação num lago seco e outros suicidando-se para viver.
Ao acordar dormindo, sonhei que eu estava dormindo e quando acordei, percebi que eu estava dormindo...
Enquanto isso um cego disse que via passarinhos pastando e vacas pulando de galho em galho a procura de seus ninhos... Vi então um sujeito comendo o guardanapo e limpando a boca com o bife. Assim, comecei a declamar uma poesia calando-me dizendo: 'mais vale um vivo morto do que um morto vivo...'
Quando acordei com o despertador na cama levantei-me deitado no relógio e preparei-me para mais um dia de trabalho..."
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